segunda-feira, 28 de janeiro de 2008
Como falar dos livros que não lemos? Homenagem aos amigos Bibliotecários.
Em uma época em que o número de leitores despenca a olhos vistos, um título como estes só provoca desconfiança em uma livraria. Se o autor fosse um norte americano, certamente seria sinônimo de picaretagem...Mas, para nossa surpresa, trata-se de um francês. E mais, um francês professor de literatura francesa na Universidade de Paris e psicanalista! Vencidos os pré-conceitos, não segui o conselho do título e acabei adquirindo a obra. E a li por inteiro. Eis um livro que discute a noção do que é ''leitura'': o que é leitura, ler uma obra por inteiro e não recordar nada, ou ler trechos escolhidos a esmo com um propósito bem definido? Segundo o escritor francês, mesmo que nunca tenhamos lido um autor- como, por exemplo, o célebre James Joyce- ainda assim podemos ter uma idéia de sua obra pelo que ela representa em um contexto, e no conjunto da literatura. ''Lemos'' Joyce nas menções feitas por outros autores, e nos inúmeros artigos já escritos sobre sua revolucionária obra. Para exemplificar, Pierre Bayard lembra que Paul Valéry escreveu um panegírico sobre Proust por ocasião de sua morte, sem nunca tê-lo lido...A leitura não tem início, meio ou fim. É como um almoço que digerimos, que só convencionalmente pode ser dividido em ''entrada'', principal e ''sobremesa''. Dentro de nós não há divisões semelhantes, e tudo vira um só bolo a ser digerido e, virtualmente, expelido. Não conheço ninguém que seja capaz de recitar as palavras todas de um livro. E, mesmo que possível tal proeza, ainda seria necessário entendê-lo, explicá-lo, comentá-lo. Livros são meras aglomerações de palavras, juntas por convenção. São, como tantas outras, meios de comunicação, de transmissão de mensagens. É impossível delimitar dentro de mim mesmo o que eu li em cada livro por onde passei os olhos, e o que ficou de permanente. Além da compreensão formal, o mais importante é o prazer que estas obras todas nos proporcionaram. Prazer gratuito, imensurável, inesquecível. Mas deixemos de intermediar as idéias, para ver um pouco do que o próprio francês diz em sua obra. Ele começa com a visita de um homem a uma Biblioteca, no livro ''O Homem sem Qualidades'', de Robert Musil: ''Percorremos as fileiras daquele depósito colossal e posso dizer-lhe que não me abalei tanto assim: aquelas fileiras de livros não são mais impressionantes que um desfile de guarnição. Mas depois de algum tempo comecei a calcular mentalmente e cheguei a um resultado bastante inesperado. Tinha imaginado antes de entrar, veja você, que se eu começasse a ler um livro por dia, o que seria evidentemente bastante esgotante, terminaria conseguindo num dia ou num outro, e poderia então pleitear uma certa situação na vida intelectual, mesmo que me faltasse algo de tempos em tempos. Mas o que você acha que me respondeu o bibliotecário, quando vi que nosso passeio se eternizava e eu lhe perguntei quantos volumes continha exatamente aquela absurda biblioteca? Três milhões e meio, ele me respondeu! No momento em que ele me disse isso, nós estávamos mais ou menos no número 700 mil: mas a partir dali, fiquei calculando sem parar. Vou poupar-lhe os detalhes; de volta ao Ministério, refiz mais uma vez o cálculo com lápis e papel: da maneira como eu tinha imaginado, levaria mais ou menos 10 MIL ANOS- nosso grifo- para chegar ao final do meu projeto''. Continuando, o personagem do General dá voz ao bibliotecário do lugar: ''Como eu o segurava o tempo todo pelo paletó, eis que ele se aprumou como se de repente tivesse se tornado grande demais para suas calças frouxas e me disse com uma voz que demorava bastante em cada palavra, como se agora fosse me revelar o segredo daquelas paredes: ''Meu General! O senhor quer saber como eu posso conhecer cada um destes livros? Pois eu lhe digo agora: é porque não leio nenhum!''. ''Agora também já era demais!'', pensou o General. ''Diante do meu assombro, ele evidentemente quis se explicar. O segredo de todo bom bibliotecário é, e de toda a literatura que lhe é confiada, jamais ler senão os títulos e os índices. ''Aquele que botar o nariz no conteúdo estará perdido para a biblioteca!'', me informou. ''Pois jamais terá uma visão do conjunto!''. Sem fôlego eu lhe perguntei: - ''Quer dizer que o senhor jamais lê um destes livros?'' - ''Jamais, com exceção dos catálogos''. -''Mas o senhor é de fato Doutor, não?''- ''Claro. Professor universitário, de biblioteconomia. A biblioteconomia é uma ciência em si- ele me explicou.- Quantos sistemas o senhor acha que existem, meu General, para classificar e conservar os livros, corrigir os erros de impressão, as indicações errôneas de páginas, de título, etc.?".
Em um outro trecho de sua obra, Pierre Bayard afirma que ''ser culto é ser capaz de se situar rapidamente dentro de um livro, e esta ação de se situar não implica lê-lo integralmente, muito pelo contrário. Seria até mesmo possível dizer que quanto maior for esta capacidade, menos será necessário ler um livro em particular''. Sobre o esquecimento, o francês diz que ''A leitura não é somente conhecimento de um texto ou aquisição de um saber. Ela está também, e a partir do momento em que se inicia, engajada em um irreprimível processo de esquecimento. No momento em que estou lendo, eu já começo a esquecer o que li, e este processo é inelutável, prolongando-se até o momento em que tudo se passa como se eu não tivesse lido o livro e em que eu passo a ser o não-leitor que poderia ter permanecido caso tivesse sido mais prevenido. Então, dizer que se leu um livro funciona sobretudo como uma metonímia. Nunca lemos de um livro senão uma parte mais ou menos grande, e mesmo essa parte está condenada, em um prazo mais ou menos longo, ao desaparecimento. Assim, mais do que com livros, nós nos entretemos, a nós mesmos e com os outros, com lembranças aproximativas, remanejadas em função das circunstâncias do tempo presente''. Finalizando este belo le polêmico livro sobre livros e sobre leitura, dois assuntos que nos interessam sobretudo, o autor ressalta que ''Poderíamos chamar de biblioteca interior esse conjunto de livros- subconjunto da biblioteca coletiva que habita em todos nós- sobre o qual toda personalidade se constrói, conjunto que organiza em seguida sua relação com os textos e os outros. Uma biblioteca onde certamente figuram determinados títulos precisos, mas que é sobretudo constituída, como a de Montaigne, de fragmentos de livros esquecidos e de livros imaginários através dos quais apreendemos o mundo''. Seja qual for a conclusão, concordem ou não com as idéias deste polêmico autor francês, que este seja um convite à leitura permanente e infindável, seja como for, em que meio se der. A leitura do pequeno livro de Bayard é um prazer, como deve ser toda verdadeira leitura.
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2 comentários:
Eu, como bibliotecário, concordo com o autor, com o articulista alcnol, e com quem desenvolva essa linha de raciocínio abordada. Ressalvo que, da mesma forma, em termos de não se ler os livros de uma biblioteca, em grande quantidade, seu instrumento de trabalho, ao bibliotecário seria impossível – então ele não iria organizar o acervo porque estaria apenas lendo livros, revistas, vendo dvds, ouvindo cds, vendo mapas, em suma, todo material que ele organiza - como é impossível o advogado saber e ler todos os códigos de leis, o médico saber de tudo de todas as especialidades, do gari dar conta de varrer toda uma cidade num dia, e por aí vai. Não acredito que Bayard seja polêmico, pois, como esse livro, tantos outros sobre o mundo da imaginação que o livro, a leitura, provocam, é encantador e aí é que reside a beleza do livro, da leitura. Borges, o Jorge Luís, afirmou que a leitura na qual não predomina o prazer, é inútil, como você afirmou no final desse seu artigo, e sobre o livro disse: “que diferença pode haver entre um livro e um jornal ou um disco? A diferença é que se lê um jornal para o esquecimento, um disco se ouve também para o esquecimento; é algo mecânico e, por conseguinte, frívolo. Um livro se lê para a memória”. E mais Borges: “Outras vezes tive ocasião de dizer que o arado, a espada são extensões da mão; o microscópio, dos olhos; mas um livro é algo mais: é uma extensão da memória, do entendimento”. Jules Bernard: “Quando penso em todos os livros que ainda posso ler, tenho a certeza de ainda ser feliz”. Montesquieu: “Nunca tive um dessabor que uma hora de leitura não aliviasse”. Francis Bacon: “Alguns livros devem ser provados, outros engolidos e muito poucos devem ser mastigados e digeridos”. Victor Hugo: “Ler é beber e comer. O espírito que não lê emagrece como um corpo que não come”. Ralph Emerson: “A biblioteca de um homem é uma espécie de harém”. Henry Miller: “Devemos ler para oferecer à nossa alma a oportunidade da luxúria”. Franz Kafka: “Um livro deve ser o machado que partirá os mares congelados dentro de nossa alma”. Cícero: “Se tens um jardim e uma biblioteca, tens tudo”. Heinrich Mann: “Uma casa sem livros é como um quarto sem janelas”. Simone de Beauvoir: “Escondidas no silêncio da biblioteca, mascaradas pela escura monotonia das capas, todas as palavras estavam lá, esperando que eu as decifrasse. Eu sonhava me enfurnar naqueles corredores poeirentos, e nunca mais voltar”....
Mas o interessante é que o título do livro de Bayard cheira a picaretagem: ''Como falar dos livros que NÃO lemos"...O leigo pode achar que se trata de algum manual para ''parecer inteligente sem leitura''- algo que sabemos ser impossível. Se o autor fosse americano poderíamos esperar algo do gênero...Porém, e o outro lado da leitura? E a frustração que sentimos em uma Livraria Cultura ao contemplarmos todas aquelas obras que ainda não lemos? Não é só prazer, mas também uma espécie de compulsão, de vício...
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