Impossível não tratar aqui de uma recente aquisição de livro na Livraria Cultura, que li de uma sentada só. O livro é pequeno- para os meus padrões: ''SÓ'' 228 páginas- mas é daquelas obras que lemos com extrema atenção, sublinhando tudo. Isto porque a obra chama-se ''Conversas com Kafka'', de Gustav Janouch. E Kafka, como podemos verificar na obra, era um frasista genial. Janouch era um jovem aspirante a escritor, que conviveu com Kafka por alguns meses. No prefácio da obra inclusive se informa que tal convivência se deu em alguns limitados lugares- o escritório, passeios pela rua- e que a obra não aborda dois importantes assuntos da vida de Kafka à época: a paixão por Milena Jesenska e a redação da obra ''O Castelo''. Não importa. O pouco de Kafka que foi retratado ali é genial, e serve como excelente amostra. Assim como uma gota de água está para um oceano...À obra, pois, dividida quase sempre por temas ( porém alerto que, tantos foram os trechos destacados, é provável que tenha de voltar ao tema em outras postagens...) : DO PAPEL DO POETA: ''- Você descreve o poeta como um ser de estatura prodigiosa, cujos pés se encontram sobre a terra, enquanto sua cabeça desaparece nas nuvens. É naturalmente uma imagem bem habitual no quadro de representações da pequena burguesia. É uma ilusão, saída dos desejos escondidos e que não tem nada a ver com a realidade. O poeta é na verdade sempre menor e mais fraco que a média da sociedade. Por isso ele sente o peso da existência terrestre muito mais intensa e fortemente que os outros homens. Cantar não passa, para ele pessoalmente, de uma forma de gritar. A arte é para o artista um sofrimento, pelo qual ele se libera para um novo sofrimento. Ele não é um gigante, mas um pássaro mais ou menos multicolorido na gaiola de sua existência'' ( p.15 ). NO ESCRITÓRIO ONDE KAFKA TRABALHAVA: ''(...)Lembro-me que a cada 'Entre!' impertinentemente emitido por aquele colega Kafka tinha um leve sobressalto. Parecia voltar-se para si mesmo e olhava enviesado, com uma desconfiança não-dissimulada, para baixo, como se esperasse de repente receber um golpe. De resto, adotava a mesma atitude quando seu colega se dirigia a ele em tom amável. Via-se que Kafka sofria, a respeito deste Treml, de inibições desagradáveis(...)- Tem medo dele? Kafka deu um sorriso embaraçado e disse: - Um carrasco é sempre suspeito. - Que quer dizer? - Um carrasco, em nossos dias, é um honrado funcionário; o espírito pragmático da função pública assegura-lhe um bom tratamento. Conseqüentemente, por que não haveria um carrasco adormecido em todo funcionário honrado? - Mas os funcionários não matam ninguém! - Oh, sim! E como! - respondeu Kafka abaixando as mãos e batendo-as na mesa. - Eles pegam seres vivos capazes de se transformar e deles fazem matrículas de arquivos, mortos e incapazes da mínima transformação'' (nosso grifo) (páginas 18/19). AINDA NO ESCRITÓRIO, COMENTÁRIO SOBRE O COLEGA TREML: ''Suspirei: - Está bem. O senhor o elogia, mas não gosta dele. Seus elogios só tem por objetivo esconder sua aversão. Kafka piscou os olhos e mordeu o lábio inferior. Completei meus argumentos: - Para o senhor, é alguém de outra espécie. O senhor o vê como um animal estranho em sua jaula. Então o Doutor Kafka me fixou quase desagradavelmente e articulou com uma voz baixa, rouca de tão contida: - Engana-se. Não é Treml, sou eu que estou na jaula. - É compreensível. O escritório...O Doutor Kafka me cortou a palavra: - Não falo somente deste escritório. Falo em geral. - Colocou seu punho direito sobre o peito. - Carrego minhas barras sempre comigo. " (página 20)(...)''Cada um vive atrás das grades que carrega consigo. Eis porque tantos livros hoje falam de animais. Isto exprime a nostalgia de uma vida livre, natural. Mas a vida natural, para os homens, é a vida de homem. Contudo, ninguém vê isto. Ninguém quer ver. A existência humana é demasiadamente penosa, por isto queremos nos livrar dela, ao menos pela imaginação" (pág. 23). JUVENTUDE X VELHICE: ''- Sua novela ( ''O carregador de carvão'', nota)contém tanto sol e bom humor. Há nela tanto amor, embora não se fale nisso. - Não é na novela, mas em seu assunto: a juventude- respondeu gravemente Kafka. - A juventude é que é cheia de sol e amor. A juventude é feliz , porque tem a faculdade de ver a beleza. A perda dessa faculdade marca o começo da triste velhice, da decrepitude, da infelicidade. - A velhice exclui qualquer possibilidade de felicidade? - Não, é a felicidade que exclui a velhice. - Ele inclinou a cabeça sorrindo, como se quisesse escondê-la entre os ombros. - Aquele que conserva a faculdade de ver a beleza não envelhece'' (nosso grifo: página 32). SOBRE A LITERATURA: ''Ficamos quinze dias sem nos ver. Eu lhe enumerava os livros que tinha 'devorado' nesse tempo. Kafka sorriu e disse: - Da vida, pode-se tirar muito facilmente uma série de livros; mas dos livros tira-se pouca, bem pouca vida. - A literatura e assim uma péssima forma de colocar as coisas em conserva- disse eu. Kafka começou a rir, aprovando com a cabeça" (p.35). São tantos os trechos em destaque, que é preciso selecioná-los com ainda mais esmero para não passar o dia em frente à tela do computador. Vejamos: "Quando o Doutor Kafka regressou, contei-lhe o episódio e concluí meu relatório com essas palavras: - Eu deveria ter pegado aquela mulher de jeito e sem moderar minhas palavras. Em vez disso, fiquei mudo. Sou um molenga! Kafka sacudiu a cabeça e disse: - Não fale assim. Você não sabe que energia reside no silêncio. A agressividade não passa de poeira nos olhos, é uma manobra que habitualmente se destina a camuflar, aos olhos do mundo e aos seus próprios olhos, a fraqueza daquele que a ela recorre. A verdadeira prova de energia e constância está em se submeter a ela. Só o fraco perde a paciência e se torna grosseiro. Assim fazendo, perde geralmente toda a dignidade humana" (p.42). As estórias sobre Kafka acabam tornando-se também a estória da fome deste pobre ''taquígrafo''/transcritor, que ainda não tomou- às 8 e pouco da manhã, o seu café neste cinzento dia de sábado...Creio que não darei conta, nesta postagem, de tudo o que vi de bom na obra que transcrevo. Mas, continuando, sobre o uso das palavras: ''Mostrei a carta ao Dr. Kafka, que a empurrou com a ponta dos dedos para a outra extremidade de sua mesa, como um objeto perigoso. E ele disse: - Os insultos tem algo de aterrorizante. Esta carta me faz o mesmo efeito que um braseiro esfumaçado, que nos queima a garganta e os olhos. Todo insulto desmantela a maior invenção do homem: a língua. Aquele que profere um insulto...insulta a alma. É uma tentativa de assassinato, perpetrada contra a Graça. Torna-se disso igualmente culpado aquele que não pesa as palavras com seu peso justo. Pois falar é pesar e delimitar. A palavra é uma escolha entre a morte e a vida. - Que pensa o senhor disso?- perguntei-lhe. - Devo mandar a esse indivíduo uma intimação judicial? Kafka sacudiu a cabeça com energia: - Não! Para quê? Ele não daria a menor importância a uma advertência desse tipo. E mesmo se o fizesse...deixe-o. A ''vaca'' de sua carta cedo ou tarde vai chifrá-lo. Jamais escapamos aos fantasmas que deixamos sair. O mal sempre volta ao seu ponto de partida" ( p.44). Ainda sobre o embate juventude X velhice: ''- Se entendo bem, o senhor é muito cético diante do combate da juventude contra a velhice- observei. Kafka sorriu e respondeu: - Seja eu cético ou não, é um fato que esse combate é só aparente. -Um combate aparente, como é isso? - A velhice é o futuro da juventude, que cedo ou tarde a atingirá, inevitavelmente. Então porque se bater? Para envelhecer mais depressa? '' (p.79). Concluo parcialmente as citações desta bela e apaixonante obra, para poder, enfim, tomar o meu café da manhã. Continuarei fazendo referências ao livro, posteriormente...