(...)"Como eu fosse menino, as pessoas me batiam no rosto, chamando-me covarde. Isto porque eu não sabia ter medo. Desde então, porém, aprendi a temer com o verdadeiro medo, que só cresce quando cresce a força que o concebe. Não temos idéia dessa força, exceto no medo. Pois é tão ininteligível, tão completamente hostil a nós, que nosso cérebro se dilacera no lugar em que nos esforçamos por pensá-lo. E, ainda assim, já algum tempo acredito que é a nossa força, toda a nossa força, que ainda é forte demais para nós. É verdade, não a conhecemos, mas não será exatamente aquilo que é mais nosso o que menos conhecemos? Às vezes penso como terá surgido o céu, e a morte: surgiram porque afastamos de nós o que tínhamos de mais precioso, porque havia tanto que fazer ainda, e porque, com nossas ocupações, este tesouro não estava em segurança junto a nós. Eis que os tempos passaram por cima de tudo isso, e nos habituamos a coisas mais insignificantes. Não reconhecemos nossa posse, e horrorizamo-nos com sua extrema dimensão. É possível?"
(...)"Jovem que sentes nascendo em ti algo que te faz tremer, aproveita esta condição: a obscuridade. E se esses que te consideram um nada te contradisserem, e se esses com quem lidas te abandonarem, e te quiserem exterminar por causa dos teus amados pensamentos, que significa esse perigo óbvio, que te concentra em ti, diante da sutil ameaça da glória futura, que te tornará inofensivo porque te disseminará? Não queiras que ninguém fale de ti, nem com desprezo. E quando o tempo passar, e notares que teu nome começa a circular entre as pessoas, não leve este fato a sério mais do que todo o resto que sai de suas bocas. Pensa que teu nome se arruinou, desiste dele, assume outro qualquer um, com que Deus possa chamar por ti à noite. E esconde-o dos demais. Tu, o mais solitário de todos, isolado, encontraram-te tão depressa: e serviram-se de tua glória. Há algum tempo eram contra ti, agora lidam contigo como se fosses um deles. Carregam tuas palavras nas gaiolas da sua presunção, exibindo-as nas praças, e excitam-se todas, no alto da sua segurança. Todas essas tuas terríveis feras(...)".
(...)''É ridículo. Estou aqui sentado em meu quartinho, eu, Brigge, que completei 28 anos, e de quem ninguém sabe nada. Estou aqui sentado, e não sou nada. E, contudo, esse nada começa a pensar, e num quinto andar, numa cinzenta tarde parisiense, pensa esses pensamentos: É possível que ainda não tenhamos visto, reconhecido e dito nada verdadeiro e importante? É possível que tenhamos tido milênios para contemplar, refletir e anotar, e deixássemos esses milênios passarem como uma hora de recreio na escola, em que se come pão com manteiga e uma maçã? Sim, é possível. É possível que, apesar do progresso, da cultura, da religião e da sabedoria universais, tenhamos permanecido na superfície da vida? E que mesmo essa superfície- que em si já seria alguma coisa- esteja recoberta de um tecido tão incrivelmente monótono que nos pareça móveis de sala numas férias de verão? Sim, é possível. É possível que toda a história da humanidade tenha sido um mal-entendido? Que o passado seja falso porque sempre falamos em multidões, como numa reunião de muita gente, em vez de falarmos no único, em torno do qual todos se agrupavam porque ele era estrangeiro e morria? Sim, é possível. É possível termos acreditado na necessidade de recuperarmos fatos acontecidos antes de sermos nascidos? É possível que tenhamos de recordar a cada indivíduo que ele nasce dos antepassados, que portanto contém em si todo esse passado, e que nada tem a aprender com outros homens que pretendem possuir um saber melhor ou diferente? Sim, é possível. É possível que todos esses homens conheçam bem um passado que nunca existiu? Que para eles todas as realidades nada sejam; e sua vida transcorra desligada de tudo, como um relógio num quarto vazio? Sim, é possível. É possível que nada se saiba de donzelas que, ainda assim, vivem? É possível que se diga 'as mulheres', 'as crianças', 'os rapazes', sem pressentir ( apesar de toda a cultura, sem pressentir ) que há muito essas palavras não têm mais plural, mas apenas incontáveis singulares? Sim, é possível. É possível existirem pessoas que dizem 'Deus' e pensem que isso é um ser que lhes é comum? Vejam esses dois meninos de escola: um compra uma faca; o vizinho compra outra idêntica no mesmo dia. Depois de uma semana mostram-se mutuamente essas facas, e acontece que só remotamente ainda se parecem- tão diversamente se desenvolvem em mãos diferentes. ( Sim, diz a mãe de um deles, porque vocês precisam gastar tudo logo?). E então: é possível acreditar que se possa ter um Deus sem usá-lo? Sim, é possível. Mas se tudo é possível, ao menos vagamente possível, então, por tudo que há de sagrado no mundo, algo tem de acontecer. O primeiro a ter esse pensamento inquietante precisa começar a fazer algo do que foi omitido; mesmo se for apenas um sujeito qualquer, talvez nem mesmo o mais indicado: simplesmente, não há outro melhor. Esse jovem estrangeiro insignificante, esse Brigge, terá de sentar-se num quinto andar e escrever, dia e noite: sim, terá de escrever, e este será o fim". ( ''Os cadernos de Malte Laurids Brigge'', de Rainer Maria Rilke, Editora Novo Século ).
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