terça-feira, 2 de junho de 2009

Outra obra-prima de Albert Manguel: ''À mesa com o chapeleiro maluco''...

O célebre escritor argentino Albert Manguel- autor, entre outros, de ''Uma história da leitura'', ''Os livros e os dias'' e ''Uma biblioteca à noite''- acaba de ter mais uma obra publicada no Brasil, pela editora Companhia das Letras. Trata-se de ''À mesa com o chapeleiro maluco- ensaios sobre corvos e escrivaninhas''. Desta última obra selecionamos o trecho abaixo, sobre o famoso escritor inglês H.G.Wells. Mas primeiro vamos ao trecho interessante da biografia do próprio Wells destacado por Manguel: ''Aos sete anos eu já era um leitor precoce, e num velho número da revista Chambers li a estória de uma pobre criatura quebrada na roda. Fui para a cama e tive um pesadelo assustador, no qual minha mente deu um salto racional. Pulei todas as etapas intermediárias do assunto. Sonhei que o próprio Deus Todo-Poderoso era quem quebrava o homem na roda( nosso grifo). Porque essa era a consequência lógica da ocorrência do fato. O Todo- Poderoso era responsável pelo mundo inteiro; tanto do mal que há nele quanto do bem. Esse sonho foi a resolução perfeita de minhas angústias. Soube que Ele, o terrível Ele, era impossível. Restava-me resolver ainda uma série de problemas filosóficos menores, mas eu não acreditei mais em Deus Todo- Poderoso''( página 187 de ''À mesa com o chapeleiro maluco''). O mais interessante disto tudo é o profundo reflexo que esta decisão terá sobre a obra futura de H.G. Wells, e é o próprio Alberto Manguel quem nos narra isto nas linhas seguintes: ''O Deus que tortura o homem na roda aparece, sob diferentes máscaras, ao longo de toda a obra de Wells, não mais como divindade negada, e sim como criatura que engendra pesadelos( nosso grifo): é o dr. Moreau em sua ilha, incapaz de entender a dor das criaturas em que faz suas experimentações; é o invasor de ''The War of the Worlds''( Guerra dos Mundos), para quem a vida dos outros, os seres humanos, não conta; é cada Morlock que explora os delicados Eloi em ''The Time Machine''( A máquina do tempo); é o ambicioso Uncle Ponderevo em ''Tono Bungay''. Esses seres demoníacos fazem suas vítimas sofrerem, mas também lhes permitem demonstrar suas qualidades mais decentes e gloriosas. Em Wells, as vítimas podem redimir( ás vezes)seus próprios sofrimentos''( página 188). Difícil negar esta visão do mundo como um imenso abatedouro, uma ''máquina de moer gente'', em especial diante de fatos históricos como o Holocausto, na Segunda Guerra Mundial. A diferença, que nos faz religiosos ou não, é quanto à autoria de todos estes horrores: para Wells, como bom ateu, de um Todo Poderoso alheio à agonia e sofrimento de suas criaturas; para os que crêem, como eu, na figura de um ente superior, que nos concebeu e deu plena liberdade de ação, toda a ''conta'' destes horrores deve ser debitada de nossos próprios atos insanos...Aí está o momento divisor decisivo na vida de todos os homens: quando somos capazes de perceber que o lodo em que nadamos foi engendrado por nós mesmos...Difícil mesmo é quando chegamos a este instante radical mas esclarecedor em que não há nenhum outro ser ou criatura em que botar a ''culpa'' pelos nossos próprios horrores...Alcnol.

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